ICMS e Guerra fiscal
Luis Kobielski Luis Kobielski

ICMS e Guerra fiscal

Publicado em 12 de março de 2013

ICMS e Guerra fiscal

A ilegal restrição aos créditos de mercadorias oriundas de outras unidades da Federação

Poucas situações ilustram com tamanha eloquência a irracionalidade do sistema tributário nacional e o desrespeito das autoridades tributárias aos direitos do cidadão quanto a que é tema do presente artigo. A guerra fiscal é um tema de sabedoria geral: os Estados da Federação há muito digladiam entre si através de renúncias fiscais visando atrair para seus respectivos territórios empresas e investimentos privados. Alguns têm esta prática por salutar, denominando-a de concorrência ou competitividade fiscal, outros a têm como negativa, na medida em que compromete as combalidas finanças dos Estados.

A nosso ver a atração de investimentos por meio de incentivos fiscais é em princípio salutar, pois submete o setor público a uma espécie de livre concorrência, agindo assim como um freio na voracidade fiscal e na carga tributária. Parafraseando Adam Smith, é a mão invisível do mercado agindo no setor público em favor do cidadão. É preciso, é claro, que tal concorrência encontre balizas nos princípios da igualdade e da livre concorrência, evitando que alguns se beneficiem em detrimento de outros localizados no mesmo Estado da Federação e impondo freios aos lobbys e à corrupção.

Fato é, entretanto, que o legislador Constituinte realizou uma opção política muito clara no sentido de vedar essa competitividade fiscal. Reza a Constituição Federal, em conjunto com a Lei Complementar 24/75, que a concessão de benefícios fiscais por parte dos Estados dependerá da aprovação unânime de representantes de todos os Estados da Federação por meio do Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ). Assim, se o Estado de São Paulo, por exemplo, pretender conceder isenção de ICMS a determinada mercadoria, deverá pedir prévia autorização aos demais Estados, e esse benefício somente será válido se eles autorizarem o benefício por unanimidade.

Vale para nós cidadãos uma lógica bastante simples e funcional: se não pagamos nossas contas, vamos para o Serasa e corremos o risco de perder nossos bens; se não cumprimos as leis, o Poder Público aplica sobre nós pesadas multas e sanções administrativas, civis e penais. Já para os entes políticos, entretanto, as regras são um pouco diversas. É sabido, por exemplo, que o Estado do Rio Grande do Sul não paga seus credores e disto não decorre nenhuma consequência (veja-se os precatórios). Quando os Estados descumprem as leis a que se submetem, é bem parecido.

Ocorre que muito embora mantenham e alimentem a burocracia do CONFAZ (à custa dos contribuintes) os Estados da Federação, sem exceção, não dão a mínima para as suas regras! Literalmente, todos os Estados concedem incentivos fiscais que não possuem autorização do CONFAZ nos termos em que exigiria a lei. Seria suficientemente insólito mas não é só. Além de ignorarem a lei, os Estados frequentemente ingressam em juízo uns contra os outros, acusando o descumprimento das leis que descumprem. Não satisfeitos em concederem benefícios ilegais, os Estados querem ainda invalidar os benefícios concedidos pelos outros.

Esta prática, de ingressar em juízo para anular os benefícios dos outros, com o tempo virou um jogo de cartas marcadas: enquanto a ação não é julgada pelo STF, a lei que institui o benefício ilegal permanece em vigor, e como a ação leva cinco anos para ser julgada, basta aguardar o STF marcar o julgamento que irá “anular” a lei para, dias antes, revogar a lei e o STF ficar impedido de julgar o mérito em face da perda do objeto da ação. No dia seguinte, basta instituir novamente o benefício ilegal.

Como ninguém cumpre a lei, ninguém é punido e o Poder Judiciário não consegue fazer nada a respeito, os Estados mudaram de estratégia: resolveram punir quem não tem nada a ver com a história, ou seja, o contribuinte. Os Estados passaram a vedar ou limitar que nas compras interestaduais o contribuinte sediado em seu território aproprie créditos de ICMS oriundos de mercadorias cujo vendedor, na origem, tenha sido contemplado por benefício fiscal não autorizado pelo CONFAZ. Significa dizer que os Estados, por conta própria, passaram a desconsiderar as leis dos demais Estados, aplicando ainda em razão deste ato unilateral uma punição que somente seria legítima diante de um ato praticado pelo Poder Judiciário.

No Estado do Rio Grande do Sul, por exemplo, o comerciante que adquirir de outros Estados da Federação as mercadorias arroladas no Apêndice XXVII da Instrução Normativa DRP nº 45/98 não poderá creditar-se em sua conta gráfica de ICMS do valor do imposto destacado no documento fiscal, mas sim do valor do ICMS que este instrumento legal permite. Para que se tenha uma ideia da amplitude desta restrição, basta dizer que ela tem mais de dez páginas e envolve mercadorias oriundas de todos os Estados da Federação, entre elas carne bovina, têxteis, feijão, leite, frango, peixes, pneus, produtos de informática, entre inúmeras outras. Em supermercados, por exemplo, o impacto desta restrição é gigantesco.

O único alento é o fato de que os contribuintes têm tido sucesso nos tribunais superiores (STF e STJ) contra essa sucessão de absurdos. Decisões do STJ e do STF têm acatado a tese dos contribuintes e reconhecido a absoluta ilegalidade da restrição aos créditos com base nestas normas locais e derrubado ainda autos de infração lavrados com base nestes dispositivos.

É, a nosso ver, recomendável e salutar que os contribuintes antecipem-se a qualquer atitude dos fiscos e busquem preventivamente reconhecer a ilegalidade destas restrições aos créditos, assegurando assim o direito a creditar integralmente o imposto destacado nos documentos fiscais de mercadorias oriundas de outros Estados da Federação, a despeito de elas constarem na lista do Apêndice XXVII da Instrução Normativa DRP nº 45/98. Tal medida, além de prevenir a criação de passivos ocultos na empresa, pode servir como importante diferencial competitivo ou ainda como valioso incremento na lucratividade.

Ricardo Paz Gonçalves

Advogado

Diretor da Affectum – Auditoria e Consultoria Empresarial

Diretor da SPGonçalves Advocacia Empresarial

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